Processo transitou em julgado 15 anos após o ocorrido. Mulher tinha conseguido na Justiça autorização para abortar porque bebê tinha uma síndrome que o impedia de ter vida fora do útero.
A mulher que teve um aborto legal interrompido pôde ver, 15 anos após o ocorrido, a Justiça encerrar, a seu favor, o processo por danos morais que abriu em Goiás. Segundo a defesa dela, a ação cível teve todos os recursos esgotados e ela deve receber R$ 60 mil com correção e juros – que somam quase R$ 400 mil – do padre Luiz Carlos Lodi da Cruz, que foi considerado responsável pelos traumas impostos à vítima e condenado a pagar a indenização.
O processo relata que a mulher tinha conseguido na Justiça o direito de abortar porque recebeu dos médicos o diagnóstico que seu bebê tinha uma condição que o impedia de ter vida fora do útero – síndrome de Body Stalk. Enquanto tomava os medicamentos para abortar, o padre conseguiu outra decisão, que interrompeu o procedimento e a obrigou a deixar o hospital. Após oito dias, o bebê nasceu, mas morreu menos de duas horas depois.
A jovem entrou na Justiça em 2008. A decisão que condenou o pároco é de 2016, da ministra Nancy Andrighi, pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Desde então, os recursos da defesa do padre foram todos negados e, em agosto de 2020, o processo tramitou em julgado, esgotando as possibilidades de novas apelações.
O G1 entrou em contato com a defesa do padre por meio de mensagem, às 13h20 desta segunda-feira (28), e aguarda retorno com um posicionamento sobre a decisão.
À época da condenação, ele chegou a dizer que não se arrependia porque estava defendendo uma vida. Também logo após a decisão da ministra, fiéis ofereceram doar dinheiro ao padre para que ele pagasse o valor a que foi condenado, mas ele publicou uma carta recusando as doações.
Duas entidades que ajudam mulheres que passaram por situações similares criaram o Fundo Vivas para que ela possa receber algum auxílio financeiro por meio de doações, já que a execução do pagamento dessa indenização pode demorar. O projeto também pretende juntar verba para apoiar mulheres em situações similares e evitar que tenham de enfrentar tantas dificuldades.
Aborto legal
O processo relata que, quando a vítima tinha 19 anos – em 2005 – , ela engravidou do marido e, durante a gestação o diagnóstico que o bebê tinha a síndrome de Body Stalk. Morando em Morrinhos, no sul de Goiás, o casal foi até Goiânia para fazer outras consultas e conseguiu, na Justiça, autorização para o aborto.
No entanto, também conforme consta na decisão, o processo em que deveria tomar, durante quatro dias, medicamentos controlados para induzir o parto, foi interrompido no terceiro dia. O motivo foi uma nova liminar concedida pela Justiça a pedido do padre Luiz, que soube do procedimento.
“[A situação] ganhou contornos trágicos com a liminar conseguida pelo recorrido, que obrigou a equipe médica a interromper o uso da medicação, quando já havia início de dilatação. E como se não bastasse essa cadeia de eventos, por si aterrorizante, no dia seguinte a recorrente foi mandada para casa, perdendo o apoio técnico da equipe médica”, escreveu a ministra Nancy em sua decisão que condenou o padre.
Segundo os registros judiciais, a gestante já estava com dilatação e, mesmo assim, teve de voltar para casa, porque o hospital estaria descumprindo uma ordem judicial se a mantivesse internada ali. Oito dias depois ela teve o bebê, que viveu por uma hora e 40 minutos.
Advogada da vítima, Gabriela Louzada contou ao G1 que todo o processo foi muito sofrido, desencadeou um processo depressivo e que até hoje a cliente sofre as consequências do aborto interrompido.
“Ela sofreu muito assédio de pessoas que foram atacá-la porque ela estava indo atrás do padre, por ter buscado o aborto. Ela é uma mulher negra, trabalhadora e que tem essa ferida que até hoje não cicatrizou”, disse.
Ainda morando em Morrinhos, ela trabalha em uma indústria e o marido, por causa da pandemia, está sem emprego e cuida dos dois filhos do casal em casa: um de 10 e outro de 4 anos. O mais velho tem transtorno do espectro autista, o que exige cuidados especiais.
Como foram anos até que a Justiça reconhecesse o direito dela de ser indenizada, associações parceiras criaram um fundo para ajudar a jovem e outras mulheres em situações similares.
“Criamos esse fundo, que foi lançado hoje, para antecipar alguma reparação por causa do tempo que ainda pode levar o pagamento dessa indenização e porque já foram 15 anos de espera. O ideal seria fazer cumprir a Justiça o quanto antes”, completou.
Parte das doações será entregue à mulher, que deve repor o valor ao fundo assim que receber a indenização do padre, e servirá também como um fundo de emergência para outros casos parecidos.
Entendimento da Justiça
Na decisão de 2016 que condenou o padre Luiz ao pagamento da indenização, a ministra Nancy Andrighi afirmou que o pároco abusou dos seus direitos ao pedir a liminar para interromper o aborto.
“Busca, mesmo que por via estatal, a imposição de seus conceitos e valores a terceiros, retirando deles a mesma liberdade de ação que vigorosamente defende para si”, escreveu a magistrada.
Segundo a ministra, o padre deve ser considerado responsável por tudo que desencadeou a interrupção do procedimento de aborto.
Ao condená-lo, a magistrada listou que o pároco violou a intimidade do casal para fazer prevalecer “sua posição particular”, agrediu a honra da família ao denominar a atitude tomada por eles de “assassinato” e agiu de forma temerária ao impor a eles “sofrimento inócuo”.
Fonte: G1/Goiás.